sábado, 1 de abril de 2017

Um balanço aos 3.8

"O que sou nunca escondi,
Vantagem nunca contei,
Muita luta já perdi,
Muita esperança gastei.
Até medo já senti,
E não foi pouquinho não.
Mas, fugir, nunca fugi,
Nunca abandonei meu chão"
Geraldo Vandré

         Completei 38 anos de vida. Deve ter sido sorte. Nenhum acidente ou doença fatal interrompeu minha atividade cerebral neste tempo todo.  Perto dos 40 anos, sinto -me muito mais corajosa para determinadas coisas, e muito mais medrosa para outras. Talvez grande parte disso seja prudência adquirida, a partir das observações detalhistas que acumulei neste tempo corrido.

         Continuo fiel aos meus princípios. A cada dia que passa, a convicção de que não errei de que lado estar aumenta na medida em que a luta de classes acirra -se cada vez mais, escamoteada, mascarada e fantasiada em novas roupagens contemporâneas e muitas vezes atraentes. Impossível não carregar esta observação, visto meus pilares, como a formação cristã na Teologia da Libertação, na figura da Pastoral da Moradia, em partidos políticos, e em sindicatos, que já somam 24 anos de uma escolha. Ou talvez, uma e ao mesmo tempo várias.

         Certas coisas continuam me chocando tanto quanto há vinte anos atrás. Talvez a diferença seja a minha reação, que muito lapidei a controlar, não esboçando a qualquer momento tanta indignação. Aprendi  que existem momentos reservados para a arte da audição. Histórias de vida,  opiniões das mais diversas, mesmo quando destas brotem choques no meu cérebro.

          Recentemente, ouvi duas cotidianas que deixaram lembranças. Em outras palavras, que minha atividade no magistério público seria menos importante do que o meu sucesso financeiro, que vivo uma realidade de reclamações de péssima remuneração, mas que por mérito e esforço próprio cada um pode encontrar a sua saída individual. Doeu. Não porque eu tenha ficado ofendida ou levado para o lado pessoal. Mas na hora lembrei dos meus alunos. Quem vai abraça -los? Quem vai desenvolver neles o prazer de raciocinar cientificamente? Quem vai levar doces e figurinhas? Quem vai sair na defesa de uma escola pública de qualidade para os filhos dos trabalhadores? Privatização deixa algo melhor e mais acessível? Talvez por isso eu tenha me doído mais pelos meus alunos do que por eu mesma. Mas, e eu, historiadora e professora? Quanto valho para o mercado? Não posso reclamar do meu salário se aceitei esta difícil empreitada do magistério público? Segundo a lógica meritocrática, não.

         Na sequência, descubro que o avô - cujo ser humano não conheço - de uma inocente e graciosa criança, conta sem remorso que trabalhou três meses no DOPS exclusivamente para queimar documentos. Na hora pensei na criança. Caso ela fosse uma secundarista ou universitária crítica ou inconformada nos anos setenta, seu avô poderia ter queimado os relatos médicos de sua tortura.

         Continuo em choque com a fome, com a miséria, com o avanço da homofobia, do machismo, e do racismo. Nem sei se posso caracterizar como avanço, mas como exposição. Muita coisa que era comentada no interior das residências, na intimidade das famílias, agora foi parar nas ruas e nas redes sociais. Recentemente assisti "O Sal da Terra", filme biográfico a respeito de Sebastião Salgado. Aquelas fotos de Ruanda mexeram demais comigo. Seres humanos que ninguém quer ver porque é feio, é desagradável. Vamos falar de assuntos mais amenos. Nunca consigo esquecer quando vejo estas coisas. Grudam como cracas no meu cérebro.

         Por conta destas posições, fui chamada ao longo da vida de "radical" e "intolerante". Claro, acabei me acostumando. Depois de tanto tempo, né? Deve ter começado quando eu tinha uns doze anos e há três havia optado pelo curso de História. Queria encontrar uma explicação para a vida como ela é.  Encontrei muitas respostas,  e mais perguntas que se formaram - às vezes mais importantes que as próprias respostas.

         Como nasci em 1979, cresci ouvindo dos adultos em geral que o melhor a se fazer na vida era uma faculdade, ter emprego com carteira assinada, ou ser funcionário público. Receber décimo terceiro, férias, FGTS, um dia se aposentar. Mas, "como tudo o que é sólido desmancha no ar", vivo para ver tudo isso se desmanchando, assistindo reações ora apáticas, ora passivas, ora otimistas. Estas últimas são aquelas que me assustam mais. E finalmente as reações nas ruas, inconformadas, talvez tachadas por muitos de obsoletas, náufragos do socialismo. Eu digo que não. Estes com quem estou junto nas ruas, em voz, suor e dores nas pernas, são os forjadores do futuro da classe trabalhadora. Descendentes daqueles que conquistaram estes direitos, e ancestrais daqueles que herdarão esta luta.

         As alcunhas de "radical" e "intolerante" ficaram por conta dos princípios dos quais nunca abri mão. Eu realmente não vou me sentar à mesa com pessoas que apoiam ou praticam mutilação genital feminina na Somália ou no Senegal. Não vou jantar com nazistas, porque eles defendem segregação e morte. Não vou lanchar com os algozes da educação pública, que destroem planejada e organizadamente futuros promissores e talentos impressionantes de jovens e crianças, dia após dia. Não fico indiferente. Sempre tomei partido, desde que me entendo por gente. E é nesta estrada que continuo a caminhar e lutar. Mas há momentos em que preciso rir para não chorar. Olho o mundo com a tristeza de quem já viu muita desgraça, e com os olhos esperançosos de quem já viu muita bondade.

         Obrigada Vandré, obrigada Candeia, obrigada Cartola...obrigada Marx.

Alessandra Fahl Cordeiro

"Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar"

Antonio Candeia

Foto: Eduardo Gurgel