"O que sou nunca escondi,
Vantagem nunca contei,
Muita luta já perdi,
Muita esperança gastei.
Até medo já senti,
E não foi pouquinho não.
Mas, fugir, nunca fugi,
Nunca abandonei meu chão"
Geraldo Vandré
Vantagem nunca contei,
Muita luta já perdi,
Muita esperança gastei.
Até medo já senti,
E não foi pouquinho não.
Mas, fugir, nunca fugi,
Nunca abandonei meu chão"
Geraldo Vandré
Completei 38 anos de vida. Deve ter sido sorte. Nenhum
acidente ou doença fatal interrompeu minha atividade cerebral neste tempo todo.
Perto dos 40 anos, sinto -me muito mais
corajosa para determinadas coisas, e muito mais medrosa para outras. Talvez
grande parte disso seja prudência adquirida, a partir das observações
detalhistas que acumulei neste tempo corrido.
Continuo fiel aos meus princípios. A cada dia que passa, a
convicção de que não errei de que lado estar aumenta na medida em que a luta de
classes acirra -se cada vez mais, escamoteada, mascarada e fantasiada em novas
roupagens contemporâneas e muitas vezes atraentes. Impossível não carregar esta observação, visto meus pilares, como a formação cristã na Teologia da Libertação, na figura
da Pastoral da Moradia, em partidos políticos, e em sindicatos, que já somam 24
anos de uma escolha. Ou talvez, uma e ao mesmo tempo várias.
Certas coisas continuam me chocando tanto quanto há vinte
anos atrás. Talvez a diferença seja a minha reação, que muito lapidei a controlar,
não esboçando a qualquer momento tanta indignação. Aprendi que existem momentos reservados para a
arte da audição. Histórias de vida, opiniões das mais diversas, mesmo quando
destas brotem choques no meu cérebro.
Recentemente, ouvi
duas cotidianas que deixaram lembranças. Em outras palavras, que minha
atividade no magistério público seria menos importante do que o meu sucesso
financeiro, que vivo uma realidade de reclamações de péssima remuneração, mas
que por mérito e esforço próprio cada um pode encontrar a sua saída individual.
Doeu. Não porque eu tenha ficado ofendida ou levado para o lado pessoal. Mas na
hora lembrei dos meus alunos. Quem vai abraça -los? Quem vai desenvolver neles
o prazer de raciocinar cientificamente? Quem vai levar doces e figurinhas? Quem
vai sair na defesa de uma escola pública de qualidade para os filhos dos
trabalhadores? Privatização deixa algo melhor e mais acessível? Talvez por isso
eu tenha me doído mais pelos meus alunos do que por eu mesma. Mas, e eu,
historiadora e professora? Quanto valho para o mercado? Não posso reclamar do
meu salário se aceitei esta difícil empreitada do magistério público? Segundo a
lógica meritocrática, não.
Na sequência, descubro que o avô - cujo ser humano não
conheço - de uma inocente e graciosa criança, conta sem remorso que trabalhou
três meses no DOPS exclusivamente para queimar documentos. Na hora pensei na
criança. Caso ela fosse uma secundarista ou universitária crítica ou inconformada
nos anos setenta, seu avô poderia ter queimado os relatos médicos de sua
tortura.
Continuo em choque com a fome, com a miséria, com o avanço
da homofobia, do machismo, e do racismo. Nem sei se posso caracterizar como
avanço, mas como exposição. Muita coisa que era comentada no interior das
residências, na intimidade das famílias, agora foi parar nas ruas e nas redes
sociais. Recentemente assisti "O Sal da Terra", filme
biográfico a respeito de Sebastião Salgado. Aquelas fotos de Ruanda mexeram
demais comigo. Seres humanos que ninguém quer ver porque é feio, é
desagradável. Vamos falar de assuntos mais amenos. Nunca consigo esquecer quando vejo estas coisas. Grudam como cracas no meu cérebro.
Por conta destas posições, fui chamada ao longo da vida de
"radical" e "intolerante". Claro, acabei me acostumando.
Depois de tanto tempo, né? Deve ter começado quando eu tinha uns doze anos e há
três havia optado pelo curso de História. Queria encontrar uma explicação para
a vida como ela é. Encontrei muitas
respostas, e mais perguntas que se
formaram - às vezes mais importantes que as próprias respostas.
Como nasci em 1979, cresci ouvindo dos adultos em geral que
o melhor a se fazer na vida era uma faculdade, ter emprego com carteira
assinada, ou ser funcionário público. Receber décimo terceiro, férias, FGTS, um
dia se aposentar. Mas, "como tudo o que é sólido desmancha no ar", vivo
para ver tudo isso se desmanchando, assistindo reações ora apáticas, ora
passivas, ora otimistas. Estas últimas são aquelas que me assustam mais. E
finalmente as reações nas ruas, inconformadas, talvez tachadas por muitos de
obsoletas, náufragos do socialismo. Eu digo que não. Estes com quem estou junto
nas ruas, em voz, suor e dores nas pernas, são os forjadores do futuro da
classe trabalhadora. Descendentes daqueles que conquistaram estes direitos, e
ancestrais daqueles que herdarão esta luta.
As alcunhas de "radical" e "intolerante"
ficaram por conta dos princípios dos quais nunca abri mão. Eu realmente não vou
me sentar à mesa com pessoas que apoiam ou praticam mutilação genital feminina na
Somália ou no Senegal. Não vou jantar com nazistas, porque eles defendem
segregação e morte. Não vou lanchar com os algozes da educação pública, que
destroem planejada e organizadamente futuros promissores e talentos
impressionantes de jovens e crianças, dia após dia. Não fico indiferente.
Sempre tomei partido, desde que me entendo por gente. E é nesta estrada que
continuo a caminhar e lutar. Mas há momentos em que preciso rir para não chorar.
Olho o mundo com a tristeza de quem já viu muita desgraça, e com os olhos esperançosos
de quem já viu muita bondade.
Obrigada Vandré, obrigada Candeia, obrigada Cartola...obrigada Marx.
Alessandra Fahl Cordeiro
"Deixe-me
ir preciso andar
Vou
por aí a procurar
Rir
pra não chorar
Deixe-me
ir preciso andar
Vou
por aí a procurar
Rir
pra não chorar"
Antonio
Candeia
Foto: Eduardo Gurgel
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