quarta-feira, 2 de março de 2011

Cachorro Urubu ou o avesso da universidade*

*Texto produzido em 2007.


“E todo jornal que eu leio,
me diz que a gente já era,
que já não é mais primavera,
oh baby, oh baby,
a gente ainda nem começou...”

Cachorro Urubu – Raul Seixas

Foi com muita tristeza – e quem sabe com nenhum espanto - que assisti na televisão a desocupação da Reitoria da PUC/SP ser realizada pela tropa de choque. Triste fim para a história de uma universidade que tem seu nome ligado a grandes mobilizações da vida política desse país. Não pude deixar de escrever alguns comentários sobre o assunto, pois não só carrego o nome da PUC nos meus diplomas, como também carrego no meu coração inúmeras lembranças dos cinco anos em que praticamente “morei” no campus Monte Alegre - além de ter plena consciência que boa parte da formação que tenho hoje é resultado da excelência científica que encontrei nesta universidade, que além de ser responsável pela formação de muitos intelectuais no Brasil ainda tem seu nome cravado em tantos momentos da história recente do mesmo, sendo um pólo de resistência contra a ditadura militar, principalmente nos anos 70.
O episódio da invasão da PUC pelos militares no dia 22 de setembro de 1977 é muito conhecido, e até hoje tema de artigos, conversas informais e assunto presente nas lembranças de muitos que lá estudaram, em qualquer época. Assunto importante porque, em plena ditadura, a UNE organizou um encontro clandestino no campus Monte Alegre, reunindo um número até hoje incerto de estudantes, pois na história não se contabiliza aquilo que é clandestino, proibido e reprimido.
Na data citada, a PUC foi invadida barbaramente por uma tropa da polícia militar que colocou centenas de estudantes em fila indiana, envolvidos ou não com a UNE. Lembro até hoje do relato de alguns dos meus professores, os quais tive a oportunidade de ouvir pessoalmente, relembrando daquele dia. Uma estava na sala de aula, lecionando, quando um militar invadiu seu espaço e ordenou para que todos saíssem. Outro tropeçou durante o encaminhamento da fila, e foi socorrido a tempo pelos seus colegas, antes que a truculência armada se irritasse com o acidente.
Mas as coisas não terminaram aí. Boa parte do edifício foi depredada, pelo menos uma bomba de napalm foi utilizada – versão sempre negada pela oficialidade – e um número considerável de estudantes saiu ferido, alguns em estado de hospitalização e cirurgia. Todos foram levados para “averiguação”. Todos também sabem quem foi o responsável pelo comando da operação, mas a cada dia que passa, parece mais perigoso citar determinados nomes...Aliás, o melhor é não citar nenhum. Estamos mesmo em uma democracia ou a maioria realmente vive na caverna?

Invasão da PUC/SP pelos militares em 22/09/1977


A então Reitora conduziu muito bem a defesa da universidade, assim como o então Cardeal de São Paulo. Em entrevistas escritas e faladas, e também em depoimentos, defenderam os estudantes, a universidade, a juventude e a liberdade, guardadas as restrições que aquele momento histórico tenebroso impunha.
Nos dias seguintes, o assunto ganhou proporção na imprensa. Afinal, mesmo se tratando de um período ditatorial, uma universidade católica havia sido invadida pelos militares e estudantes de classe média assediados e feridos – o que sempre repercute. A partir deste episódio, iniciou – se uma questão de autonomia e segurança. Quantas vezes eu ouvi que “polícia não entra na PUC!”. Na época, o Cardeal chegou a declarar na imprensa que “polícia só entra na PUC se fizer vestibular”. Não obstante, um pouco mais tarde teria início o lento processo de abertura política e anistia. Uma parte dos anos mais horrorosos da história republicana do Brasil estava chegando ao fim – digo parte porque o brasileiro, enquanto povo, respirou poucos ares tranqüilos ao longo de sua história.
Os anos se passaram e a PUC continuou a ser palco de importantes movimentos da História do Brasil, como as Diretas – Já, defesa dos povos indígenas, lutas contra o racismo, contra a globalização capitalista, contra as comemorações mentirosas dos 500 anos do país, invasão do Afeganistão, Iraque, sempre causando polêmica, organizando mesas de debates, participando de manifestações públicas.
Ocupar a reitoria da PUC passou a ser uma das ferramentas dos estudantes frente aos aumentos abusivos de mensalidades ocorridos a partir dos anos 80. Ao contrário do que muitas mentes conservadoras podem propagar, ocupação de reitoria não é atitude de uma horda de bárbaros que quebram tudo o que encontram pela frente, como vem propagando uma emissora de tv muito conhecida. As ocupações que ocorreram na PUC, principalmente a de 1999, foram muito mais organizadas e pacíficas do que muitos eventos oficiais observados neste país. Tal ferramenta permitiu obter, sendo utilizada quando todos os outros meios haviam se esgotado, matrículas para estudantes inadimplentes, isentar de taxas de matrícula fora de prazo e cobrar quando a própria universidade recusava – se a negociar em termos plausíveis e adequados com a realidade de muitos que ali ingressaram via vestibular – o que sempre entendi como uma obrigação da universidade, que recebia isenção de milhões de impostos por ser “filantrópica”. Além do mais, vamos lembrar porque é muito importante, é legítimo lutar contra o caráter privatista da educação, que não é uma mercadoria – pensamento este cada dia mais restrito para um número menor de cérebros humanos.
Assim, assisti a desocupação da reitoria pela tropa de choque como a última pá de terra por cima de um cadáver que jazia há algum tempo. A última porque, como é de conhecimento público, a PUC entregou parte de sua administração nas mãos de grandes banqueiros, retirando assim seus canais comunitários de negociação com os estudantes, proibindo festas, afixação de cartazes, manifestações, instalando sindicâncias contra seus estudantes mais engajados na luta pela educação e livre desenvolvimento do ser humano, cobrando e perseguindo judicialmente seus ex – bolsistas, demitindo uma parte importantíssima de mestres e doutores que fizeram o nome da universidade ser respeitado nacional e internacionalmente.
Acredito que a PUC que eu conheci, e tantos outros conheceram, nos anos 70, 80 e 90, desapareceu, morreu, perdeu – se nos mares revoltosos da história. As ondas da repressão que um dia tentaram traga – la, agora são geradas em seu interior, devorando seus próprios filhos, impedindo suas próprias idéias, sua própria fonte criativa e criadora. Triste e verdadeiro, escrevi este texto sem nenhuma pretensão acadêmica para que a história não seja esquecida e nem adulterada, caso contrário, eu não seria mais uma historiadora, seria uma matéria amorfa também tragada pelas ondas do irracional, deixando para trás a luta por “uma sociedade onde o livre desenvolvimento de cada um signifique o livre desenvolvimento de todos.”

Invasão da PUC/SP pela tropa de choque em 2007

“Vós que vireis na crista da onda em que nos afogamos, quando falardes de nossas fraquezas pensai também no tempo sombrio a que haveis escapado.”

Bertold Brecht

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